Thursday, September 22, 2005

Decidi partilhar a minha Alfazema

Já escrevi este pequeno ensaio há algum tempo, a proposito de um concurso literario na minha escolinha. Era-nos pedido que escrevessemos acerca da nossa infância. Assim o fiz, mas como se fosse um rapaz, como em pequena tanto queria ser. Acabei por não o entregar para o concurso, gostei tanto dele que quiz que fosse só meu.

“Alfazema”

Ardia-me o peito. Não sabia se pelo peso do que trazia no bolso da camisa, se pela marca do olhar daquele homem e pela repentina consciência do que sentia por ele, apesar de pouco me lembrar. Era o pai da minha mãe, aquele velho que apareceu de repente diante de mim. Tinha convivido muito com ele, mas o preço da minha infância foi pago em anos sem o ver, agora sentia uma vontade súbita de o abraçar, embora que para mim, ele fosse pouco mais do que um estranho que vagamente me lembrava e tratava por avô.
Era velho e cheirava a alfazema, lembro-me de como passávamos os vermelhos fins-de-tarde de Estio a debulhar milho, e de como ele dividia as suas mãos entre as espigas e o seu cigarro enrolado, de que aliás não prescindia. De como impunha a sua presença junto ao rio, de como me ensinou a pescar, e principalmente, de como era capaz de nos fazer calar em menos de um segundo quando nos beliscava por baixo da mesa com a sua mão quente, suja e calejada.
Memória velhas de um velho, que sempre lutou pelos seus ideais. E como me lembro do brilho daqueles olhos. Grandes, azuis e assustadores, seria capaz de jurar, em pequeno, que estes conseguiam engolir pessoas.
Sinceramente nem me lembro de como comecei esta carta, só me lembro de sentir uma nostalgia melosa, de que não gosto nada, quando o vi numa fotografia antiga. Ah, era linda a forma como se ajeitava para ir à missa todos os dias santos ou de festa e como, quase que meticulosamente compunha o seu cabelo grisalho.
Agora não. Ele estava a olhar para mim, e os segundos pareciam horas eternas que teimavam em não passar, bailando, porém, num cheiro sufocante a baunilha. O silêncio quebrou-se quando ele pronunciou a primeira frase em anos: “Continuas com o mesmo sonho?”. Não respondi, preferi não o fazer, talvez por saber que se o fizesse iria ser alvo de chacota durante os próximos momentos.
Falei, então, quase como uma desculpa do tempo e de como tinha estado bom para navegar. Educado como ele era não me respondeu, mas por sua vez o velho falou horas a fio, parecendo ás vezes cansado, mas uma lembrança recriava-o jovem e forte.
Imaginem, agora, a figura de dois velhos sentados numa mesa de um café rasca, falando por quase uma tarde inteira. Olhei para o relógio, passavam vinte das cinco, levantei-me e deixei o papel que tanto me incomodava em cima da mesa, enquanto tentava arranjar meia dúzia de palavras de despedida. O papel, era um cheque em que tinha a esperança que pudesse apagar o meu passado e apaziguar um pouco a minha consciência. Queria por força pagar todas aquelas tardes de verão, todas aquelas noites estreladas, todos os bolinhos e os chocolates quentes, todos os conhecimentos do campo, todos os sonhos de criança, medos e esperanças, enfim, todas aquelas coisas muito antigas e pouco úteis. O mundo e o país tinham mudado, agora o importante era ser alguém, fazer dinheiro, ter conforto.
Tinha crescido, estudado e agora já era doutor, carro novo, bom emprego, tinha tido algumas discussões com o meu pai, mas nada de sério.
A minha mãe, enquanto foi viva, pouco falou dele. Tinha mágoas por o pai não ter ido ao seu casamento.
Recebi a notícia da doença do velho quase como se fosse um estranho e agora isto, este chamado e este estranho pedido.
Cheguei, pouco tempo antes do combinado. Ele já estava lá, nem sequer me deu tempo de especular ou ficar nervoso ou ansioso, podia ser uma qualquer questão de dinheiro, um pedido de ajuda, achei que mesmo assim que me podia escapar do problema tranquilamente, mas nada nos meus 32 anos de vida confortável, me tinham preparado para o que encontrei lá.
Após toda aquela tarde, vim-me embora. Não consegui dizer nada quando me despedi, a boca seca e o estômago torcido não ajudavam.
Lembro-me de tê-lo visitado, antes de ele falecer, estava no alpendre, com o seu pequeno corpo acomodado na cadeira e sobre o colo a mão inerte, contrariando a força contida naqueles olhos brilhantes. Nessa altura, não soube como me comportar, estendi-lhe a mão, mas o velho apenas acenou com a cabeça indicando-me um banco em frente dele. E ficamos assim, num fim de tarde, com uma caneca de café na mão só a absorver a presença um do outro.
É assim que quero continuar a lembrar-me dele, como um velho, muito velho que cheirava a alfazema e que proporcionou a melhor infância que eu poderia ter tido.

Do teu,
Ricardo Melo
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3 comments:

Alexandre Carvalho said...

Belo, um pouco vago, mas quase que sentia o cheiro a alfazema... Beijos

Pedro Ferreira said...

Agora que já todos dormem e eu sussurro de admiração, aos céus posso gritar com toda a força do coração.
A obra é bela, do compositor não se fala, um dia vejo ela, no outro quero amá-la!
Parabéns camarada e amiga de muitas horas de telefone. Tenho sentido a tua falta...

Anonymous said...

desconhecia este teu jeito para a escrita, mas posso te dizer que apreciei bastante este pequeno e profundo texto... não li os textos todos mas fica para a próxima.. bjux..e parabéns porque este texto tem qualidade.